A 3ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região rejeitou a homologação do acordo e decidiu pelo reconhecimento do vínculo empregatício entre o trabalhador e a plataforma digital UBER.

No caso concreto, o trabalhador ajuizou reclamação trabalhista em face da plataforma UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA, sob o nº 0000416-06.2020.5.11.0011, requerendo dano moral por atraso de salários e assédio moral, intervalo intrajornada, acúmulo de função, dentre outros pedidos discriminados.

 A UBER alegou que não havia o preenchimento dos requisitos caracterizadores do vínculo de emprego, bem como afirmou que o que existia era um contrato de parceria entre o prestador e a tomadora.

O Magistrado a quo julgou improcedentes os pedidos, uma vez que a relação existente entre o motorista e a UBER é uma relação de trabalho semelhante ao trabalho autônomo, mas não um vínculo empregatício, tendo em vista a ausência dos requisitos caracterizadores.

Desta forma, o reclamante recorreu da decisão alegando que as normas jurídicas relativas à existência do vínculo empregatício devem ser interpretadas e harmonizadas com o contexto normativo vigente, em especial, com os princípios constitucionais. Afirmou que estava inserido no contexto produtivo da reclamada, a qual não sobrevive sem a força de trabalho prestada pelo obreiro, bem como que restaram caracterizados os vínculos de emprego, conforme instrução processual ocorrida. Assim, aduziu que a reclamada, antes de ser uma plataforma digital, é uma empresa de transporte de passageiros. 

A seguir serão analisados os argumentos discorridos pela 3ª Turma do TRT11:

a) Não homologação do acordo proposto pela UBER

Primeiramente, foi ressaltado que, conforme a Súmula 418 do TST, a homologação do acordo constitui faculdade do juiz, não emergindo como direito líquido e certo das partes, sendo que essa prerrogativa do julgador se justificaria com muito mais ênfase nas situações nas quais o escopo do acordo é obstar a análise da matéria, ocasionando o esvaziamento dos direitos abordados no tema, mormente os constitucionais.

O acordo, juntado pela reclamada na véspera do dia de realização da sessão de julgamento, previa o valor de 5 mil reais, quantia esta que, segundo a 3ª Turma, se mostra irrazoável e que, evidentemente, destoa dos direitos e créditos postulados pelo trabalhador.

Ainda, homologado o acordo, o trabalhador não poderia voltar a firmar nova relação de trabalho com a reclamada. 

b) Reconhecimento do vínculo de emprego

Conforme os artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis Trabalhistas, é necessário o preenchimento dos seguintes requisitos para a caracterização do vínculo empregatício: pessoa física/pessoalidade, não eventualidade, onerosidade, subordinação e alteridade.

Ainda, o art. 6º da CLT complementa o vínculo da relação empregatícia quando dispõe que o trabalho pode ser realizado à distância, podendo ser controlado por meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão.

Segundo o TRT11, esse contexto de trabalho controlado por sistemas virtuais, já previsto no art. 6º da CLT, ganha ainda mais relevo quando a relação contratual é intermediada por plataformas digitais, a exemplo da UBER, nas quais não há a figura física do empregador, representando uma quebra de paradigma nas relações de trabalho.

– Pessoalidade

Com a celebração do contrato de trabalho, “o empregado contrai uma obrigação de fazer, de caráter personalíssimo e intransferível a terceiro”, segundo Gabriel Saad, configurando, assim, um contrato intuito personae.

Francisco Rossal de Araújo e Rodrigo Coimbra afirmam que “a noção de pessoalidade parte da acepção de que o trabalho deve ser prestado por uma pessoa certa e determinada”.

No caso em comento, o requisito da pessoa física/pessoalidade restou caracterizado pela prestação de serviços efetivada por uma pessoa física (reclamante) sem a possibilidade de substituição por outrem, conforme podemos observar da seguinte cláusula (fls. 507): “LICENÇA. Sujeito ao cumprimento destes Termos, a Uber outorga a você uma licença limitada, não exclusiva, não passível de sub licença, revogável e não transferível para: (i) acesso e uso dos Aplicativos em seu dispositivo pessoal, exclusivamente para o seu uso dos Serviços; e (ii) acesso e uso de qualquer conteúdo, informação e material correlato que possa ser disponibilizado por meio dos Serviços, em cada caso, para seu uso pessoal, nunca comercial. Quaisquer direitos não expressamente outorgados por estes Termos são reservados à Uber e suas afiliadas licenciadoras. (…) Você não poderá ceder, nem de qualquer outro modo transferir, sua Conta a nenhuma outra pessoa ou entidade. (…). Aqui, vale frisar que não pode o reclamante mandar outrem em seu lugar, não pelo menos sem cumprir requisitos impostos pela reclamada, até mesmo para garantir uma maior segurança para os clientes/usuários dos serviços de transporte disponibilizados pela plataforma. Tanto é verdade que são exigidas dos motoristas selfies para confirmação da identidade do prestador dos serviços.”

– Onerosidade

O elemento da onerosidade está presente quando há uma contraprestação por parte do empregador ao empregado, uma vez que este cumpriu a obrigação de prestar serviços. 

Sérgio Pinto Martins frisa a essencialidade do elemento em face de seu caráter alimentar: 

“A onerosidade é traço essencial da prestação do empregado por derivação de um caractere do contrato individual de emprego. Seria, de fato, socialmente insustentável admitir-se gratuidade nessa classe de contratos, uma vez que a prestação do empregador (o salário) é fator de subsistência do empregado. Logo, onde for admissível a prestação gratuita do trabalho não estará caracterizada a figura do empregado, como prestador.”

Maurício Godinho Delgado afirma que a contraprestação deve ser “consubstanciada no conjunto salarial, isto é, o complexo de verbas contraprestativas pagas pelo empregador em virtude da relação empregatícia pactuada”.

Segundo a 3ª Turma do TRT11, “o requisito da onerosidade é mais que evidente, uma vez que há não só a intenção de percebimento de remuneração por parte dos motoristas de aplicativos, mas o próprio adimplemento de tal pagamento por parte da plataforma. Nesse contexto, a seguinte cláusula: Você entende que os serviços ou bens que você receber de um Prestador Terceiro, contratados por meio dos Serviços, poderão ser cobrados (“Preço”). Após você ter recebido serviços ou bens obtidos por meio do uso do Serviço, a Uber facilitará o pagamento do respectivo Preço em nome do Prestador Terceiro na qualidade de agente incluirá todos os tributos exigidos por lei. (fl. 511)”.

Nesse sentido, ainda, foi ressaltado que os recibos foram emitidos em nome da reclamada, isto é, o cliente se relaciona contratualmente com a reclamada, recebendo recibo desta, sendo o motorista apenas o instrumento de operacionalização do negócio da parte ré, sendo remunerado por tal serviço.

– Alteridade

No caso em comento, o requisito da alteridade também restou caracterizado,uma vez que a reclamada é detentora dos ônus da atividade econômica, uma vez que arca com os custos de manutenção da plataforma digital, mantém empregados para prestar apoio aos motoristas do aplicativo, aufere os prejuízos decorrentes da baixa demanda e oferece cortesias aos seus clientes/usuários, sem custos para os motoristas. Ainda que alguns custos sejam transferidos diretamente para o motorista e depois custeados pelos valores auferidos nas corridas, é a plataforma digital que gerencia tais riscos, evidenciando a alteridade contratual”.

– Não eventualidade

A não eventualidade ou habitualidade nos conduz à ideia de permanência do contrato de trabalho e da relação empregatícia. 

Apesar da lei não trazer um conceito definitivo do que é eventual, a doutrina vêm construindo essa definição, muitas vezes, baseados na interpretação gramatical.

Sérgio Pinto Martins discorre sobre a habitualidade presente no contrato de trabalho:

“Um dos requisitos do contrato de trabalho é a continuidade na prestação de serviços, pois aquele pacto é um contrato de trato sucessivo, de duração, que não se exaure numa única prestação, como ocorre na compra e venda, em que é pago o preço e entregue a coisa. No contrato de trabalho, há a habitualidade na prestação dos serviços, que na maioria das vezes é feita diariamente, mas poderia ser de outra forma, por exemplo: bastaria o empregado trabalhar uma vez ou duas por semana, toda vez no mesmo horário, para caracterizar a continuidade da prestação de serviços. Muitas vezes, é o que ocorre com advogados que são contratados como empregados para dar plantão em sindicatos ou em hospitais, duas ou três vezes por semana, em certo horário, em que a pessoa é obrigada a estar naquele local nos períodos determinados. A CLT não usa a expressão trabalho quotidiano, diário, mas não eventual, contínuo, habitual. Assim, o trabalho não precisa ser feito todos os dias, mas necessita ser habitual. “

Nesse sentido, foi debatido, no caso em debate, a diferença da não eventualidade e da continuidade:

“(…) Em relação ao requisito da não eventualidade, vale ressaltar que a possibilidade de inativação e escolha dos dias para laborar não afasta o requisito em análise. (…) Aliado a tudo isso, vale salientar que a prestação de serviços de forma diária não é requisito da relação empregatícia. É que a não eventualidade não se confunde com a continuidade, este requisito de relação empregatícia doméstica (mais de dois dias na semana).”

– Subordinação

A subordinação é o principal elemento fático-jurídico definidor da relação de emprego, visto que identifica o trabalhador tutelado pela CLT, seja o urbano (com subordinação) ou o autônomo (sem subordinação).

O TRT11, em análise dos tipos de subordinação existente, ressaltou a ressignificação do conceito da subordinação jurídica, tendo em vista a evolução tecnológica e a chamada 4ª Revolução Industrial:

“(…) É nesse passo que discorrem, em estudo doutrinário, Denise Pires Fincano e Guilherme Wünsch:

É a partir dessa leitura que se sugere a ressignificação do conceito de subordinação jurídica, pois na maioria das (novas) formas de trabalho tecnológico, não há mais controle de horários, ordens dirigidas diretamente ao empregado ou mesmo a cobrança de uma disciplina rígida e constante. É preciso considerar que os meios telemáticos de comando, controle e supervisão são válidos e eficazes para fins de subordinação. O conceito clássico de subordinação, então, já é insuficiente para identificar, dentre as diversas formas de prestação de serviços, qual deverá ser tutelada pelo Direito do Trabalho. (..)” (SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA: CAMINHO PARA O DIREITO DO TRABALHO NA ENCRUZILHADA TECNOLÓGICA?, p. 50, Rev. TST, São Paulo, vol. 86, no 3, jul/set 2020)

E sobre a subordinação algorítmica afirmam os mesmos autores:

“As formas disruptivas de trabalho possibilitam até mesmo desfazer esse conceito angular em que Supiot aponta a subordinação como o poder de uma pessoa sobre outra, pois a subordinação na era tecnológica não é mais, necessariamente, exercida por uma pessoa sobre outra. Assim, será dita “subordinação algorítmica” aquela em que o controle do trabalho é definido por uma sequência lógica, finita e definida de instruções e se desenrola via ferramentas tecnológicas, tais como aplicativos. (SUBORDINAÇÃO ALGORÍTMICA: CAMINHO PARA O DIREITO DO TRABALHO NA ENCRUZILHADA TECNOLÓGICA?, p. 50, Rev. TST, São Paulo, vol. 86, no 3, jul/set 2020)

(…)

Assim sendo, vale ressaltar que os motoristas de aplicativos da reclamada não podem escolher o preço das viagens, trajetos a serem percorridos e quais clientes vão transportar (limite de cancelamentos de corridas). O percentual das viagens auferido pela reclamada é dinâmico, os recibos são emitidos pela própria plataforma, fiscalização e controle por GPS e meios telemáticos, controle da forma da condução do veículo e velocidade, etc. Tais fatos não condizem com a autonomia defendida pela reclamada.

Configurados, portanto, o poder diretivo, fiscalizatório e punitivo/disciplinar do empregador, o que culmina no que a doutrina (v.g Raphael Miziara) denomina de fattispécie (doutrina italiana) unitária complexa a ensejar a subordinação direta.”

Por fim, a 3ª Turma do TRT11 deixou claro que a tecnologia (plataforma digital algorítmica) é apenas um meio para a prestação de serviços de transporte, bem como que o algoritmo programado pela reclamada é apto o suficiente a fiscalizar e dirigir a prestação pessoal dos serviços, pois o formato da relação, ainda que moderno e gerenciado por um algoritmo, torna evidente a subordinação jurídica (clássica, objetiva e estrutural), ainda que sob releitura do seu conceito, ou subordinação dita algorítmica pela doutrina, ou mesmo a subordinação psíquica.

O processo encontra-se em andamento e a plataforma UBER afirmou que irá recorrer da decisão.

Segundo o Tribunal Superior do Trabalho, pelo prisma da transcendência, trata-se de questão jurídica nova, uma vez que se refere à interpretação da legislação trabalhista (arts. 2º, 3º, e 6º, da CLT), sob enfoque em relação ao qual ainda não há jurisprudência consolidada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho ou em decisão de efeito vinculante no Supremo Tribunal Federal.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

1 – ARAÚJO, Francisco Rossal; COIMBRA, Rodrigo. Direito do Trabalho I. Editora LTr, São Paulo, 2014, p. 241;

2 – DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Editora LTr, 10ª edição, São Paulo, 2011, p. 287;

3 – MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. Editora Atlas, São Paulo, 2007, p. 121;

4 – SAAD, Eduardo Gabriel. Curso de Direito do Trabalho. Editora LTr, São Paulo 2000, p 128.