O mundo está cada vez mais moderno, e com isso, é cada vez mais raro a realização de transações com o dinheiro físico.
As transações digitais estão cada vez mais comuns, seja por meio de PIX, transferências, entre outros, sendo que as cédulas e as moedas deram lugar aos cartões com chip de aproximação e aos aplicativos.
Com a adventos das novas tecnologias, também começaram a surgir novas formas de “dinheiro”, novas moedas de troca, como é o caso das moedas virtuais, sendo que uma das mais conhecidas é a criptomoeda.
Mas por ser algo recente e ainda não muito conhecido, ainda há muitas dúvidas, principalmente quanto à regulamentação dessa moeda e também sobre a possibilidade de sua constrição para o adimplemento de dívidas.
As criptomoedas são uma espécie de moeda virtual, utilizadas como meio de troca, geralmente descentralizado, onde normalmente é utilizada a tecnologia de blockchain e da criptografia para assegurar a validade de suas transações e para a criação de novas unidades.
As características sobre as criptomoedas possuem uma feição delicada, uma vez que estas não estão sujeitas a nenhuma regulamentação e nenhum controle do governo, e, portanto, seu valor é definido tão somente com base na lei da oferta e da procura, obtendo uma grande inconstância e uma dificuldade em ser valorada em termos patrimoniais propriamente ditos.
Apesar disso, é incontroverso que são bens imateriais dotados de valor econômico e por esse motivo, em tese, não há óbice para que a moeda virtual possa ser penhorada para garantir dívidas, como ocorreu no julgamento do Agravo de Instrumento 2202157-35.2017.8.26.0000, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
O artigo 789 do Código de Processo Civil salienta que o devedor responde com todos os seus bens, presentes ou futuros, pelas suas obrigações, ressalvadas as restrições estabelecidas em lei.
Logo, uma vez as criptomoedas possuem conteúdo financeiro, elas efetivamente fazem parte do patrimônio do devedor, podendo, portanto, ser penhoradas.
Além disso, não existe uma regra ou lei específica sobre as criptomoedas que impeça a sua constrição patrimonial. Os casos de impenhorabilidade estão previstos no artigo 833 do CPC, onde nada consta acerca das moedas virtuais.
Desta forma, tendo em vista que as criptomoedas possuem valor econômico, além de não estarem previstas no rol do artigo 833 do CPC, mostra-se totalmente possível a sua constrição como um bem abstratamente penhorável.
Neste sentido, o TJSP proferiu decisão recentemente:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO MONITÓRIA – CUMPRIMENTO DE SENTENÇA – Expedição de ofício às corretoras de criptomoeda – Possibilidade – Frustração das demais tentativas de localização de bens da executada – Necessidade de intervenção do Poder Judiciário – Informação não acessível pelo sistema BacenJud – Recurso provido. (TJ-SP – AI: 20555467420218260000 SP 2055546-74.2021.8.26.0000, Relator: Hugo Crepaldi, Data de Julgamento: 07/07/2021, 25ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/07/2021). ”
Em que pese a possibilidade de constrição das criptomoedas, tem-se que um dos pontos que gera mais incertezas é sua elevada volatilidade, que faz com que seu valor de mercado seja muito instável.
Isso pode acabar dificultando a penhora de tais moedas, podendo torna-la, inclusive, uma constrição inofensiva, uma vez que no momento da penhora a avaliação pode ser uma, mas no momento da expropriação o valor poderá ser totalmente diverso.
No entanto, não há que se pensar que tal volatilidade impossibilita a constrição.
Isso porque, se pensarmos em um procedimento padrão, essa variação também pode ocorrer com outros bens.
Assim, pode-se concluir pela seguinte solução: caso haja uma variação do valor da criptomoeda para mais, será realizada a penhora e a quantia excedente deverá ser devolvida para o devedor.
Agora, caso ocorra uma variação do valor da criptomoedas para menos, pode-se aplicar de forma analógica ou extensiva o que dispõe o artigo 852, inciso I, do CPC/2015, o qual permite a expropriação imediata de bens perecíveis, como seria o caso de uma safra de grãos, por exemplo.
Desta forma, tem-se que é possível uma certa flexibilização da regra prevista na lei, com a manifesta finalidade de garantir a eficácia da determinação judicial, qual seja a penhora de criptomoedas, e a satisfação da obrigação adquirida pelo devedor.
Outra discussão frequente, é sobre a dificuldade para localizar os ativos de criptomoedas, uma vez que não existe um poder centralizado, regulador ou certificador, que de fato facilitaria a busca de bens pelas ferramentas disponíveis ao Poder Judiciário.
Mas nesse ponto, chama-se atenção para o fato de que, não são só as criptomoedas que carecem de uma autoridade central de regulamentação, existem outros bens que também não são registrados em órgãos de fácil acesso ao poder judiciário, a exemplo, as joias, obras de arte, vestidos de grife, aparelhos de televisão etc.
Tais bens possuem um conteúdo econômico da mesma forma que uma moeda virtual, e a possibilidade de penhora destes já está consolidada na jurisprudência:
“AGRAVO DE PETIÇÃO – ARGUIÇÃO DE IMPENHORABILIDADE DOS BENS CONSTRITOS – ALCANCE E ESCOPO DA LEI N. 8.009/90. A impenhorabilidade dos bens que guarnecem a residência do executado, assegurada na Lei 8.009/90, não abrange todo e qualquer móvel, posto que o escopo da lei não é amparar o executado de meios legais para se furtar à responsabilização pelos seus débitos, mas garantir-lhe, e à sua família, o mínimo necessário para uma sobrevivência digna. Na hipótese vertente, não afronta aos ditames legais a constrição judicial que recai sobre aparelhos de televisão e home theater, que, embora se mostrem úteis e tragam comodidade à vida doméstica, ao conforto mediano do devedor e de sua família, não se sobrepõem à necessidade de subsistência do trabalhador, revestidos que são os créditos trabalhistas de ínsita natureza alimentar. Agravo desprovido, ao enfoque. (Agravo de Petição nº 0001558-49.2011.5.03.0022 4ª Turma do TRT 3ª Região Rel. Júlio Bernardo do Carmo. Julgado em 02 mai 2012). ”
Logo, tem-se que tal entendimento pode ser utilizado de forma extensiva para as criptomoedas, uma vez que tratam de bens com volatilidade semelhante.
Ademais, mesmo não sendo fácil, não é impossível localizar os ativos de criptomoedas para penhora com o intuito de adimplemento de dívidas, principalmente se houver indícios de sua existência.
Caso se pretenda a penhora de criptomoedas, há uma chance muito maior de ter o pedido deferido, se for demonstrado indicadoresde que os devedores possuam investimentos em criptomoedas ou outra moeda virtual.
Isso porque, em casos de medidas executivas atípicas, muitas vezes o juízo pode entender que cabe ao credor comprovar a evidência ou a própria existência do bem que se pretende penhorar.
Agora, quanto as formas que os devedores podem utilizar para armazenamento de tais ativos, em tese são duas alternativas: o armazenamento virtual ou o armazenamento em disco rígido.
No primeiro caso, se houver indicio de que o devedor costuma investir em moedas virtuais, pode ser solicitado ao Poder Judiciário o envio de ofício de intimação para as corretoras mais conhecidas do meio, com o intuito de obter informações sobre a posse ou não dessas moedas pelo devedor.
Algo interessante, é que na atualidade, aqueles que investem em moedas virtuais ou outros tipos de investimentos fora do comum, costumam expor tal situação com habitualidade, muitas vezes em suas próprias redes sociais, o que pode servir como prova em um eventual pedido de penhora.
Já no caso de o armazenamento ser por disco rígido (como pen drives e HDs externos), é possível requerer a determinação de busca e apreensão desses bens para que possa ser realizada uma pesquisa, com o objetivo de localizar dados que indiquem a posse de criptomoedas pelo devedor.
Nesse caso, quando for necessário a busca e apreensão ou outro tipo de quebra de sigilo, é necessário que haja cuidado e atenção, uma vez que na realização do ato podem ser encontrados elementos não relacionados à moeda virtual, e sim à privacidade do devedor. Assim, uma possível solução pode ser a decretação de segredo de justiça do processo durante a o sigilo pode ser retirado.
Sobre o assunto, em 2017, a 36ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo confirmou a denegação pelo juiz de primeira instância ao pedido de penhora de bitcoins, sob o argumento de que, apesar do Bitcoin ser bem imaterial com caráter patrimonial e estar sujeito aos atos de constrição, era necessária a demonstração de sua existência. Vejamos:
“Por se tratar de bem imaterial com conteúdo patrimonial, em tese, não há óbice para que a moeda virtual possa ser penhorada para garantir a execução. Entretanto, a agravante não apresentou sequer indícios de que os agravados tenham investimentos em bitcoins ou, de qualquer outra forma, sejam titulares de bens dessa natureza. Tampouco evidenciado que os executados utilizam moedas virtuais em suas atividades. Como se nota o pedido é genérico e, por essa razão, não era mesmo de ser acolhido. Competia à agravante comprovar a existência dos bens que pretende penhorar, uma vez que não pode admitir o envio indiscriminado de ofícios sem a presença de indícios mínimos de que os executados sejam titulares dos bens. (TJSP nº 2202157-35.2017.8.26.0000, Relator: Milton Carvalho, Data de julgamento: 21/11/2016, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 21/11/2017).”
No julgamento, foi partido da premissa de que o ônus da prova da existência dos bens cabe ao credor. No entanto, é importante ter em mente também, que não se pode impor ao exequente um ônus do qual ele não pode se desincumbir.
Tais informações, sobre a existência de moedas virtuais em nome do devedor, se não expostas a público de maneira espontânea pelo devedor, será sigilosa, razão pela qual, somente com o auxílio do judiciário que se poderá obtê-las.
Assim, mesmo que existisse uma autoridade regulamentadora das moedas digitais, ainda iria ser necessária uma ordem judicial e a emissão de um ofício para se ter acesso às informações necessárias.
Desta forma, tem-se que O trabalho de identificação da existência de moedas virtuais em nome do devedor só poderá obter êxito com o efetivo auxílio do judiciário.
Nesse sentido inclusive, tem-se recente decisão do TJSP:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução de título extrajudicial – Decisão indeferiu pesquisa e penhora de criptomoeda – Cabimento – Pesquisa que não pode ser empreendida sem a intervenção do Poder Judiciário – Informações protegidas pelo sigilo, impossibilitando o acesso pelo agravante, salientando que não são abrangidas pela pesquisa Sisbajud – Recurso provido. (TJ-SP – AI: 22893903120218260000 SP 2289390-31.2021.8.26.0000, Relator: Francisco Giaquinto, Data de Julgamento: 07/03/2022, 13ª Câmara de Direito Privado, Publicação em 07/03/2022). ”
Ora, sabe-se que a solicitação de informações não se trata de penhora em si, mas sim, de fatos necessários para que possa ser realizada pelo juízo a ponderação entre o princípio de menor onerosidade e o princípio da utilidade da execução.
Logo, tem-se que é possível que o judiciário expeça oficio para verificar eventual existência de criptomoedas, uma vez que tal diligência, muitas vezes, não é possível de forma extrajudicial.
Além disso, tem-se que para o resultado útil do processo, deve o juiz se valer dos meios coercitivos cabíveis, sob pena da parte ativa passar anos litigando e, ao final, ver frustrado seu direito de recebimento do crédito.
O magistrado deve buscar a efetividade na resolução da lide, com o intuito de satisfazer a pretensão requerida pelo credor, com base no princípio da efetividade da jurisdição e princípio da razoável duração do processo, incisos XXXV e LXXVIII do artigo 5º da Constituição Federal, respectivamente.
Neste sentido, o artigo 139, inciso IV do CPC prevê que o juiz deverá dirigir o processo, incumbindo-lhe determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial.
Ademais, por mais que hajam dispositivos de lei que determinem que a execução deve seguir o meio menos gravoso ao devedor, não se pode esquecer que a mesma também determina que seja atingida a satisfação do credor, o que pode ser verificado do artigo 797 do CPC.
Desta forma, conforme demonstrado acima, tem-se que é possível a penhora das moedas virtuais, como as criptomoedas por exemplo, uma vez que se trata de bem imaterial, com conteúdo patrimonial.
No entanto, conforme demonstrado, existe certa resistência para deferimento do pedido, se não houver a demonstração pelo credor de pelo menos alguns indícios que indiquem que o devedor possui saldo de tais ativos.
Além disso, sem tais evidências (da existência das moedas virtuais), a medida pode não alcançar muita efetividade, posto que são de difícil localização e não possuem órgão regulamentador.
Por fim, tem-se que tal situação pode mudar, uma vez que já existem projetos de lei que pretendem regulamentar a circulação desses ativos, tramitando perante a Câmara dos Deputados (Projeto de Lei 462/2022) e no Senado Federal (Projeto de Lei 3.825/2019).
A expectativa é que, se aprovados e entrarem em vigor tais projetos, seja mais fácil para os credores localizarem eventuais saldos de moedas virtuais em nome dos devedores, para que assim, possam efetuar a penhora e alcançar o adimplemento do crédito pretendido.