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​Cor preta, suspeito padrão. Esse é o estereótipo presente na maior parte das abordagens e na identificação de pessoas consideradas suspeitas pelos agentes de segurança do Estado.

Divulgada em fevereiro deste ano, uma pesquisa coordenada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) confirmou, com dados inéditos, o que grande parte da população brasileira vive na pele: o racismo estrutural está presente na atividade policial e no sistema de Justiça criminal brasileiro; afinal, os jovens negros são os maiores alvos dos agentes de segurança.

Segundo o estudo, o percentual de negros entre as pessoas que já foram abordadas pela polícia chega a 63%, contra 31% de brancos, na cidade do Rio de Janeiro – cuja população total se divide em 51% de brancos, 48% de negros e 1% de outras raças. Dos que já sofreram abordagem policial mais de dez vezes, 66% são pretos ou pardos.

Outro número a ser considerado é o da proporção de negros no sistema prisional brasileiro: o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) de 2017, no quesito Perfil da População Prisional, mostrou que aproximadamente 64% dos presos são pretos ou pardos.

Na mesma linha, um levantamento feito pelo Colégio Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) mostra que, entre as pessoas acusadas indevidamente com base em reconhecimento fotográfico realizado em delegacias – as quais acabaram sendo absolvidas na sentença –, 83% eram negras.

As três pesquisas traduzem, em números, fatos que alimentam as engrenagens do racismo estrutural no Brasil: a colocação prioritária de pessoas negras na posição de suspeitas, o encarceramento em massa da população de pele preta ou parda e a violência das abordagens policiais contra essa parcela da sociedade – temas que pedem uma reflexão especial neste 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra.

Racismo estrutural no sistema jurídico

Em novembro de 2020, um homem negro foi espancado até a morte por dois homens brancos dentro de um supermercado em Porto Alegre. A brutalidade do crime, filmado por testemunhas, chocou o Brasil.

Após esse episódio, a Câmara dos Deputados instituiu uma comissão de juristas – presidida pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Benedito Gonçalves – que apresentou, no fim de 2021, um relatório de mais de 500 páginas com propostas para dotar o sistema jurídico brasileiro de instrumentos capazes de enfrentar os problemas históricos ligados ao racismo estrutural.

Ao final dos trabalhos, Benedito Gonçalves afirmou que, apesar dos avanços legais, o enfrentamento à discriminação e ao racismo estrutural ainda não é, mas precisa se tornar, prioridade das instituições públicas e privadas, e de toda a sociedade brasileira.

“A luta contra o racismo e a discriminação racial deve ser diária, constante e permanente. No relatório final da comissão, fizemos um convite ao parlamento e ao povo brasileiro para lutarmos juntos, a fim de que tenhamos uma sociedade livre, justa e solidária”, declarou.

Igualdade racial como política de Estado

Ao sugerir alterações que vão além da repressão legal ao racismo – com proposições envolvendo o sistema de Justiça criminal; o direito econômico, tributário e financeiro; os direitos sociais e medidas de combate ao racismo institucional nos setores público e privado –, o documento elaborado pela comissão de juristas teve como denominador comum o propósito de tornar a promoção da igualdade racial uma política perene de Estado.

Para o ministro Benedito Gonçalves, o racismo precisa ser tratado em duas dimensões. O racismo institucional, segundo ele, reflete-se, por exemplo, na desconfiança sem justificativa dos agentes de segurança sobre a população negra. A outra vertente é o racismo estrutural, ainda menos explícito.

“A presença do racismo estrutural pode ser constatada pelas poucas pessoas negras que ocupam lugar de destaque nas instituições”, afirmou.

Um exemplo disso são as cotas raciais como mecanismo de ingresso nas carreiras do Judiciário, que começaram a ser implantadas em 2015. Os resultados já são visíveis, tanto entre os servidores quanto nos rostos dos novos juízes e juízas.

Injúria racial é equiparada ao racismo

Benedito Gonçalves celebrou o fato de que os trabalhos da comissão continuam a dar frutos. Ele destacou a recente aprovação, pelo Senado, de um projeto de lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, tornando-o imprescritível e inafiançável.

Com isso, observou o ministro, os senadores seguiram as recomendações do relatório da comissão e referendaram uma decisão de 2021 do Supremo Tribunal Federal (STF) no mesmo sentido.

“A injúria racial equiparada ao racismo fez com que trouxéssemos para o sistema de Justiça o que o STF decidiu em 2021: um avanço muito grande”, ressaltou.

Ilegalidades na abordagem de suspeitos

A evolução jurisprudencial do STJ também tem integrado os esforços no combate ao racismo estrutural. Recentemente, as turmas de direito penal do tribunal começaram a dar visibilidade ao tema em diferentes julgados.

Em um deles, o RHC 158.580, o tribunal utilizou a expressão “racismo estrutural” ao analisar ilegalidades na abordagem policial de suspeitos – escolhidos muitas vezes em razão de sua raça e condição econômica pelas forças de segurança.

No julgamento ocorrido na Sexta Turma, o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, apontou que, como decorrência da “ainda latente mentalidade escravista, cujos efeitos perduram até os dias de hoje” no Brasil, “o controle sobre os corpos negros no espaço público se acentua por meio da repressão criminal, que se volta não apenas contra condutas concretas e danosas, mas também contra condições pessoais vistas, por si sós, como perigosas e indesejáveis”.

Ações das forças de segurança concentradas na população negra

Em entrevista sobre o assunto, Schietti afirmou que vários estudos têm analisado o tema do racismo estrutural, que também chega ao tribunal suscitado em muitos recursos, frequentemente relacionados a práticas policiais que se concentram sobre pessoas negras na periferia dos grandes centros urbanos.

Segundo o ministro, é importante ressaltar que o racismo estrutural não é encontrado somente nas polícias, mas também nas corporações e no próprio Poder Judiciário.

“É só analisar a composição da magistratura e dos próprios tribunais superiores. O que temos é uma quase escassez de representantes de cor preta nesse grupamento social”, observou.

O integrante da Sexta Turma avaliou que o STJ pode contribuir muito para o debate desse tema “sensível”, que, em sua opinião, deve ser tratado na corte sem nenhuma “reticência em expor uma realidade que precisa ser modificada”.

Reconhecimento fotográfico influenciado por estereótipos raciais

Uma questão que vem sendo enfrentada pelos colegiados de direito penal diz respeito ao reconhecimento fotográfico de suspeitos, momento em que a vítima, ao analisar imagens do suposto criminoso, pode ser influenciada por preconceitos e estereótipos, mesmo que de forma inconsciente.

Ao julgar o HC 652.284, a Quinta Turma acompanhou a reorientação de jurisprudência inaugurada pela Sexta Turma e assentou o entendimento de que a inobservância do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) invalida o reconhecimento do acusado feito na polícia, o qual não poderá servir de base para a condenação, nem mesmo se for confirmado na fase judicial.

Leia também – Reconhecimento de pessoas: um campo fértil para o erro judicial

Para o relator do caso, ministro Reynaldo Soares da Fonseca, a identificação, mesmo ratificada em juízo, não teve amparo nas provas independentes e idôneas que foram produzidas na fase judicial, com contraditório e ampla defesa, tendo o reconhecimento se mostrado falho e incapaz de embasar qualquer condenação.

O magistrado destacou que estereótipos culturais relacionados a cor, classe social, sexo ou etnia podem influenciar negativamente a identificação, que também se sujeita à falibilidade da memória humana, afetada tanto pelo esquecimento quanto por emoções e sugestões, capazes de gerar “falsas memórias”.

De acordo com Reynaldo Soares da Fonseca, debater o racismo estrutural nas decisões proferidas pela corte é fundamental para promover a igualdade em uma sociedade que se pretende justa, livre e solidária.

“Isso diz respeito ao princípio da igualdade. Todos têm que ser tratados de maneira igual. Se nós temos uma massa carcerária composta por pessoas pobres, jovens, analfabetas e negras – mais de 60% –, significa que o sistema carcerário é seletivo e que nós precisamos, como sistema de Justiça, tratar isso de forma que a gente retire essa seletividade”, afirmou.

Precedentes do STJ na vanguarda do combate ao racismo

Para o ministro Ribeiro Dantas, membro da Quinta Turma, o STJ tem sido vanguarda na formulação de precedentes que buscam repelir as práticas racistas nas investigações criminais.

Segundo ele, o trabalho do tribunal na construção da jurisprudência que vai orientar a atuação das cortes de segundo grau e dos juízos em todo o país é decisivo para o combate ao racismo estrutural.

“Com o aprimoramento da legislação, da jurisprudência, da doutrina, e com uma maior conscientização dos profissionais do direito e de uma maior e melhor estruturação, nesse ponto, do sistema de Justiça, é possível combater, efetivamente, o racismo estrutural que permeia nossa sociedade”, afirmou.

Ao citar a mudança jurisprudencial sobre a identificação de suspeitos por meio de reconhecimento fotográfico, Ribeiro Dantas explicou que a questão racial se manifesta no sistema de persecução penal principalmente, na formação da investigação.

“Muitas pessoas negras são pobres e periféricas, dada a herança da escravidão em nosso país. E isso, infelizmente, constrói estereótipos, que devem ser combatidos”, ponderou o ministro.

O magistrado defendeu o aperfeiçoamento da preparação das forças de segurança e a obediência rigorosa aos procedimentos previstos no Código de Processo Penal, além do aprimoramento da própria legislação, para proporcionar um processo criminal mais justo e menos sujeito à influência da discriminação racial.

Com informações da assessoria de imprensa do STJ.

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