Compartilhe

Conforme decidiu a Quarta Turma do STJ, em decisão de abril de 2021, condôminos não podem alugar seus imóveis através de plataformas digitais, a exemplo do Airbnb, caso a convenção do condomínio preveja a finalidade residencial das unidades.

 

Entenda o caso

Um condomínio edilício localizado no município de Porto Alegre/RS ajuizou ação em face de dois condôminos, proprietários de duas unidades condominiais, requerendo que estes se abstivessem de exercer atividades de alojamento e/ou hospedagem nas respectivas unidades, através de plataformas digitais. 

A ação foi julgada procedente, fixando o juiz multa diária para o caso de descumprimento. Os condôminos requeridos interpuseram apelação, cujo provimento foi negado pelo tribunal. Recorreram, então, ao STJ, que manteve a decisão do acórdão proferido pelo tribunal estadual.

Para o Ministro Raul Araújo:

 “o direito de o proprietário condômino usar, gozar e dispor livremente do seu bem imóvel deve harmonizar-se com os direitos relativos à segurança, ao sossego e à saúde das demais múltiplas propriedades abrangidas no Condomínio, de acordo com as razoáveis limitações aprovadas pela maioria de condôminos, pois são limitações concernentes à natureza da propriedade privada em regime de condomínio edilício.”

Na decisão colegiada, prevaleceu o entendimento de que a alta rotatividade de hóspedes nos apartamentos prejudicaria a segurança dos demais condôminos e desvirtuaria a finalidade residencial do condomínio.

 

A denominada “economia do compartilhamento”

Plataformas de intermediação de serviços, como Airbnb, Booking e Uber, constituem o que atualmente se denomina “economia de compartilhamento” – uma nova etapa no processo de desenvolvimento econômico. Essa etapa seria pautada pela preocupação com sustentabilidade e uso racional de bens, a privilegiar novas formas de acesso a bens e serviços (SOUZA e LEMOS, 2016).

O Airbnb consiste em uma plataforma online de hospedagem, pela qual, através do site ou aplicativo mobile, é possível ao interessado hospedar-se em um quarto, ou mesmo um imóvel inteiro, por curta ou curtíssima temporada. A plataforma disponibiliza imóveis “normais”. É comum que o proprietário do imóvel atue como “anfitrião”, reservando um cômodo da casa, e alguns serviços, para o hóspede.

O Judiciário tem sido provocado a manifestar-se, com cada vez mais frequência, sobre litígios envolvendo tais modelos de negócio, reconhecidamente positivos para a economia dos países em que são desenvolvidos, bem como para a geração de empregos. Ainda não há vasta produção doutrinária sobre o assunto, o que desafia o Judiciário a encontrar soluções adequadas aos casos levados à sua apreciação.

 

Natureza jurídica de contrato atípico de hospedagem

A discussão principal levada à análise do STJ tratou sobre a natureza jurídica da atividade realizada pelos condôminos requeridos: se de natureza locatícia, ainda que por temporada, ou de natureza comercial. A primeira (locação residencial por temporada) não desvirtuaria a finalidade residencial prevista na convenção condominial, ao passo que a segunda (atividade comercial) estaria proibida pela mencionada convenção. 

O art. 48 da lei de locações (Lei n. 8.245/91) assim dispõe:

Art. 48. Considera-se locação para temporada aquela destinada à residência temporária do locatário, para prática de lazer, realização de cursos, tratamento de saúde, feitura de obras em seu imóvel, e outros fatos que decorrem tão-somente de determinado tempo, e contratada por prazo não superior a noventa dias, esteja ou não mobiliado o imóvel.

Parágrafo único. No caso de a locação envolver imóvel mobiliado, constará do contrato, obrigatoriamente, a descrição dos móveis e utensílios que o guarnecem, bem como o estado em que se encontram.
(grifos acrescentados)

No entendimento do STJ, a atividade dos réus não poderia ser considerada locação por temporada, pois esta – diferentemente do caso analisado – não prevê aluguel informal e fracionado de um ou mais cômodos existentes no imóvel (a proprietária do apartamento, em depoimento, afirmou inclusive que o imóvel era disponibilizado à semelhança de um hostel).

A situação também não se enquadraria perfeitamente a um contrato típico de hospedagem, uma vez que no caso em questão não haveria estrutura ou profissionalismo inerentes para a caracterização da atividade como empresarial. Além disso, a legislação regente dos contratos de hospedagem (Lei n. 11.771/2008) estabelece uma série de serviços ofertados aos hóspedes, sendo que os réus ofereciam, eventual e acessoriamente, serviço de lavanderia e internet, tão somente.

Segundo o entendimento da maioria dos Ministros do STJ, a atividade dos requeridos possuiria maior semelhança com o contrato de hospedagem, embora não guarde estrita correspondência com este. A atividade expressaria o uso comercial do imóvel, em ambiente físico de padrão residencial, com fracionamento precário, exercida sem profissionalismo pelo proprietário ou possuidor do imóvel. Seria, portanto, um contrato atípico, uma forma peculiar de hospedagem.

 

Autonomia e força normativa da convenção de condomínio

Conforme dispõe o Código Civil, nos dispositivos destinados a regular o condomínio edilício:

Art. 1.332. Institui-se o condomínio edilício por ato entre vivos ou testamento, registrado no Cartório de Registro de Imóveis, devendo constar daquele ato, além do disposto em lei especial:

I – a discriminação e individualização das unidades de propriedade exclusiva, estremadas uma das outras e das partes comuns;

II – a determinação da fração ideal atribuída a cada unidade, relativamente ao terreno e partes comuns;

III – o fim a que as unidades se destinam.
(…)

Art. 1.336. São deveres do condômino:

I – contribuir para as despesas do condomínio na proporção das suas frações ideais, salvo disposição em contrário na convenção;

II – não realizar obras que comprometam a segurança da edificação;

III – não alterar a forma e a cor da fachada, das partes e esquadrias externas;

IV – dar às suas partes a mesma destinação que tem a edificação, e não as utilizar de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos possuidores, ou aos bons costumes. (grifos acrescentados)

 

Portanto, o proprietário de unidade em condomínio edilício pode, inicialmente, usar e dispor do seu imóvel da maneira que considerar mais conveniente. Porém, esse direito deve estar em sintonia com as regras estabelecidas pela legislação e convenção condominial.

No caso concreto, o art. 4º da Convenção do Condomínio (autor da ação) mencionava expressamente a finalidade residencial das unidades condominiais, não deixando dúvidas sobre a vedação ao uso comercial.

Em seu voto, o Ministro Raul Araújo conclui:

“existindo na Convenção de Condomínio regra impondo destinação residencial, mostra-se indevido o uso das unidades particulares que, por sua natureza, implique o desvirtuamento daquela finalidade residencial (CC/2002, arts. 1.332, III, e 1.336, IV)”

 

Voto vencido 

O Ministro Relator Luis Felipe Salomão deu provimento ao recurso, sob o fundamento de inexistir lei que limitasse o comportamento dos requeridos (princípio da legalidade) e, também, por não haver nos autos prova de que houve efetiva vulneração da segurança quanto ao convívio no condomínio. Ainda segundo o Ministro,

“o uso regular da propriedade, em inseparável exame da função social a ser destinada ao caso, permite concluir pela possibilidade da exploração econômica dos imóveis pelos recorrentes – sempre também como fator de completude à função social da propriedade –, em estrita observância aos direitos dos demais condôminos.”

Ainda segundo o Ministro, em afronta aos poderes inerentes ao exercício regular do direito de propriedade por parte dos requeridos, as instâncias ordinárias teriam conferido interpretação restritiva desarrazoada e sem previsão em lei. Além disso, consignou em seu voto que o condomínio poderia adotar medidas adicionais de segurança, a exemplo do cadastramento de pessoas na portaria, mas não restringir o uso normal da propriedade. 

 

Possibilidade de utilização das unidades condominiais para fins de hospedagem

Ressalvou-se no julgamento, contudo, a possibilidade prevista no Código Civil de alteração da convenção do condomínio edilício, para modificar a sua finalidade. No entanto, é necessário observar o quórum de unanimidade dos condôminos para tal alteração. 

Segundo o art. 1.351 do Código Civil brasileiro:

Art. 1.351. Depende da aprovação de 2/3 (dois terços) dos votos dos condôminos a alteração da convenção; a mudança da destinação do edifício, ou da unidade imobiliária, depende da aprovação pela unanimidade dos condôminos. (grifos não constantes do original)

O Código Civil, portanto, prevê a possibilidade de alterar-se a finalidade do condomínio, pelo voto da unanimidade dos condôminos. Observe-se que, para tal fim, a lei civil não menciona “unanimidade dos presentes à assembleia”, mas unanimidade de todos os titulares das unidades autônomas. 

Processo: REsp 1819075.

 

Visited 56 times, 1 visit(s) today

Co Authors :