O presente artigo trata sobre a absolvição de um sócio condenado por utilizar valores da empresa para gastos, dentre os quais, despesas pessoais, sob o fundamento de abolitio criminis, com base na extinção do voto de qualidade promovida pela Lei 13.988/2020.

No caso julgado, dois sócios fizeram retiradas de valores para si, sendo que parte dos valores foram destinados ao pagamento de despesas pessoais. Entretanto, a Administração Tributária entendeu que referidas quantias deviam ser tributadas através do Imposto de Renda, já que se constituíram rendimentos indiretos da pessoa jurídica, o que levaria à ocorrência de “Caixa 2”.

Assim, o Poder Público lavrou auto de infração com valor superior a R$ 1.500.000,00 (um milhão e meio de reais) por considerar que estas rendas indiretas obtidas pela pessoa física, seriam enquadradas como Imposto de Renda. 

Contudo, um dos sócios conseguiu o cancelamento do lançamento em sede de recurso na esfera administrativa, sendo que o outro teve denúncia ofertada pelo Ministério Público pelo crime de sonegação de tributo que é previsto no art. 1º, I da Lei 8.137/90.

Este sócio denunciado recorreu ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, mas em sede de julgamento houve empate na votação, o que levou à aplicação do voto de qualidade, ou seja, o presidente da turma (representante da Receita Federal) proferiu o voto de minerva, sendo este, o que tornou a decisão desfavorável para o empresário.

Após a apresentação do caso ao Poder Judiciário, houve sentença condenatória, não havendo anulação da decisão administrativa, além de ter sido declarada a pena de 2 anos e 11 meses de reclusão, além de 13 dias-multa.

Entretanto, a defesa entendeu que a condenação somente foi possível por conta do voto de qualidade do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Em sede tributária, é bom destacar que, somente há ocorrência de crime material contra a ordem tributária após o lançamento definitivo do tributo.

Seguindo essa linha de raciocínio, caso não houvesse o voto de qualidade naquele julgamento, não haveria a ocorrência de crime, pela inexistência de lançamento definitivo.

Ocorre que, no curso deste processo, a Lei 13.988/2020 que resultou de conversão de medida provisória extinguiu o voto de qualidade nestas decisões alterando a redação da Lei 10.522/2002, de forma que a votação deve considerar o empate como fato favorável ao contribuinte:

Art. 28. A Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 19-E:

“Art. 19-E. Em caso de empate no julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade a que se refere o § 9º do art. 25 do Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.”

Em se tratando de Direito Penal, a norma mais favorável para o agente deve retroagir para que este seja beneficiado. E como não haveria lançamento tributário em decorrência da aplicação do voto de qualidade proferido naquele processo, ocorreria o julgamento favorável ao contribuinte, ou seja, não haveria o lançamento do Imposto de Renda.

Por conseguinte, como a Súmula Vinculante 24 do Supremo Tribunal Federal leciona que “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. Com efeito, não teria havido o crime de sonegação fiscal denunciado pelo Ministério Público.

Dessa maneira, haveria a abolitio criminis da aplicação do crime contra a ordem tributária deste sócio em decorrência do princípio constitucional da novatio legis in mellius (art. 5º, XL).

Assim, a Magistrada do caso extinguiu a punibilidade daquele empresário por conta da abolitio criminis ocorrida durante o processo.

Diante dessas particularidades do Direito Tributário ligadas ao campo do Direito Penal, houve a multiplicação de processos deste tema, sendo que, no entanto, tal entendimento pode ser alterado, pois o Supremo Tribunal Federal fará o julgamento das ADI 6.415, ADI 6.399 e ADI 6.403.

Por ora, ainda não houve o pronunciamento total dos membros deste tribunal, já que somente parte dos Ministros votaram. Dentre estes, está o Relator Marco Aurélio que entendeu que essa alteração promovida pela Lei 13.988/2020 seria inconstitucional. 

Este posicionamento foi fundamentado como ocorrência de “contrabando legislativo” já que esta alteração na lei decorreu de conversão de Medida Provisória que tratava de outra matéria. Dessa forma, haveria ofensa ao princípio democrático e do devido processo legislativo, pois estas espécies normativas não possuem a mesma quantidade de debate público por parte dos cidadãos como as demais espécies legais.

Este instituto é também denominado de “jabuti”, visto que é a prática ocorrida no curso da conversão de medida provisória em lei, de incluir dispositivos que não possuem relação com o tema central da proposta legislativa.

No caso concreto, a Medida Provisória que originou aquela lei visava a transação extrajudicial entre União e devedores. Logo, não houve conexão com a pertinência do objeto desta norma. Frise-se que esta prática legislativa já foi declarada inconstitucional em 2015, na ADI 5127 pelo Supremo Tribunal Federal.

Já o Ministro Roberto Barroso abriu voto divergente do Relator, por considerar o entendimento do Ministro Marco Aurélio improcedente, por não haver em tese inconstitucionalidade formal por contrabando legislativo. Para este, a definição do que seria acréscimo impertinente do legislador com o tema central da norma ainda se encontra em construção, não havendo certeza positiva ou negativa.

Além disso, para este Ministro não haveria inconstitucionalidade material, já que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais possui estrutura diferenciada: posição paritária entre representantes da Fazenda e contribuintes; é subordinado ao Ministério da Economia e o voto de qualidade é proferido pelo presidente da turma, sendo este sempre pertencente à classe de Conselheiros do Fisco.

Assim, percebe-se uma clara tendência de julgamento a favor do Poder Público em caso de empate no julgamento, já que quem realiza o voto de minerva, é o próprio representante da Fazenda Pública. E segundo Barroso, este desequilíbrio é sanado com a extinção do voto de qualidade em demandas referentes ao crédito tributário.

Dessa forma, a presunção de legitimidade que a Administração Pública possui para seus atos administrativos é corrompida pelo grau de questionamento que pode ser gerado quanto à interpretação e aplicação de leis tributárias. 

O Ministro Roberto Barroso ainda pontuou que a Fazenda Pública pode ajuizar outra ação em caso de empate de votação para que consiga a lavratura do lançamento tributário, já que o julgamento favorável ao contribuinte em caso de voto de qualidade é uma ficção legal e não a própria definitividade da decisão.

Por ora, a ADI 6403 segue sem julgamento dos demais membros, já que o Ministro Alexandre de Moraes pediu vista. No cenário atual, a tese de não aplicação do voto de qualidade poderá beneficiar diversos contribuintes para desconstituir decisões contrárias a seus interesses.

Portanto, resta acompanhar os julgamentos destas Ações Diretas de Inconstitucionalidade, podendo ser adotada a tese do Ministro Relator Marco Aurélio, como inconstitucionalidade formal do artigo 28 da Lei nº 13.988/2020, por meio do qual foi inserido o artigo 19-E na Lei nº 10.522/2002, de forma que o voto de qualidade volte a vigorar. Por outro ângulo, há de se verificar se entendimento será superado pela fundamentação divergente do Ministro Roberto Barroso, com a proposta da tese no sentido de que seria “constitucional a extinção do voto de qualidade do Presidente das turmas julgadoras do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), significando o empate decisão favorável ao contribuinte. Nessa hipótese, todavia, poderá a Fazenda Pública ajuizar ação visando a restabelecer o lançamento tributário”.